O repórter do jornal O Globo, Bruno Alfano, me fez algumas perguntas sobre o tema dos vouchers na educação. Transcrevo aqui a íntegra de minhas respostas. A reportagem feita por ele está aqui.
Como o senhor vê o sistema de voucher? Há pontos positivos? Há pontos negativos?
Não me sinto seguro para afirmar que o sistema de voucher é uma política recomendável, pelo contrário. As maiores revisões de literatura que conheço são inconclusivas sobre sua eficácia para melhorar a qualidade da educação e combater desigualdades. Para colher bons resultados, as experiências têm de conjugar um conjunto de fatores contextuais que não parecem estar dados no Brasil. Independente de identificar aspectos positivos ou negativos em casos em outros países, vale analisar as condições do nosso país, avaliar as políticas semelhantes e a viabilidade. Há outras políticas que são mais consolidadas em termos de evidências positivas e que deveriam ser prioridade. (programas ligados a primeira infância, tempo integral, formação docente, ampliação de creches planejadas).
Como tem sido a experiência das creches conveniadas no Brasil?
Há diferentes tipos de contratos e convênios estabelecidos pelas redes no Brasil, sul e sudeste têm uma proporção maior de matrículas em escolas conveniadas do que norte e nordeste, onde a capacidade instalada da rede privada (sem e com fins lucrativos) ainda é baixa. Avaliações de tribunais de contas na rede de POA, por exemplo, mostraram que as conveniadas tem pior infraestrutura, mais alunos por sala e profissionais com formação pior do que as escolas públicas. Na rede de SP as avaliações não são muito diferentes, sem mencionar os problemas mais graves ligados a ilegalidades e a corrupção.
O conveniamento não está articulado à qualidade da educação. A história dos convênios responde à falta de oferta de vagas em creches e pré-escolas públicas, a demandas judiciais que os gestores vão atendendo através da compra de vagas, não há um planejamento claro que priorize o conveniamento como algo melhor do que a ampliação da rede própria. Os estudos que conheço também apontam para a precariedade dos serviços ofertados por escolas conveniadas, salvo exceções, claro. Tomando esses casos como referência, resta pouca expectativa de que os vouchers possam representar uma alternativa razoável de política em grande escala. Esperar isso é muito mais um anseio ideológico do que qualquer outra coisa.
Afora um piloto muito bem desenhado, com rígida avaliação de qualidade, em um contexto em que haja capacidade de absorção na rede privada, corre-se o risco de uma pulverização de escolas privadas em casas adaptadas, de baixa qualidade recorrendo ao recurso público para sobreviver e, por outro lado, as poucas escolas boas selecionando alunos de perfil já privilegiado, algo semelhante ao que ocorreu no Chile. Pesquisas também vêm mostrando que os pais mais pobres tendem a escolher a escola mais próxima de casa, critérios de qualidade não são os orientadores e os limites com transporte são condicionantes. Apenas esse exemplo já questiona a suposta “liberdade de escolha” que os pais teriam, como se existisse ampla oferta e como se os pais sempre tivessem maturidade e formação para avaliar as qualidades pedagógicas das escolas.
Ainda do ponto de vista conceitual, teríamos além de uma transferência de recursos para o setor privado, a terceirização da gestão pedagógica. O Brasil não tem tradição de boa avaliação e regulação desses aspectos, ainda mais na educação infantil, ainda pouco avaliada. Delegar a gestão de pessoal e pedagógica para o setor privado acarreta na perda da oportunidade de promover equidade e qualidade através de políticas públicas. Resido em uma região rica do RS e visitamos muitas creches conveniadas com os estágios, as condições de trabalho e de infraestrutura dessas escolas definitivamente não são melhores que as das escolas públicas. Mesmo as privadas com fins lucrativos têm problemas.
Há evidências de que não capacidade da rede privada receber esses alunos? Quais?
Se olharmos para o Censo Escolar veremos que na educação infantil (0 a 5 anos), 71% das matrículas são em escolas municipais e 27% em escolas privadas. 1/3 dessas matrículas em escolas privadas já são através de convênios com o poder público. Na zona rural o atendimento é praticamente todo público. O crescimento das matrículas na rede privada é menor do que na pública nos últimos anos, a rede privada está estabilizada nesse sentido, falando de 2014 a 2018.
Quando analisamos apenas a creche (0 a 3 anos), o cenário é semelhante e temos apenas 32% das crianças nessa idade matriculadas (de 4 a 5 anos 91% estão na escola) no Brasil. Diante do volume da demanda não é factível pensar que a rede privada teria como absorver muito mais do que atende hoje, ainda mais na escala que o governo parece pretender. Quando olhamos para as regiões mais pobres a oferta de vagas privada é ainda mais modesta. Mesmo se “retirássemos” as crianças das escolas privadas para que as mais pobres usem um “vale educação”, não teríamos as condições para alcançar as metas do Plano Nacional de Educação.
Há de se considerar ainda os limitantes legais para que escolas particulares com fins lucrativos recebam recursos públicos, conforme artigo 77 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB).
Por fim, assim como as escolas cívico-militares e o Future-se, estamos debatendo o tangencial com os vouchers, é uma pauta que não deveria estar entre as prioridades. Nada contra debater possibilidades, mas há outras ações que precisam ser encaminhadas, que são mais consensuais, que exigem menos desgaste político e cujas chances de erro e desperdício são menores. Consolidar e aumentar os recursos do FUNDEB é uma dessas medidas.