Tenho enfrentado debates, no mundo real e no virtual, sobre o peso da meritocracia na alocação dos lugares sociais dos indivíduos. Esse tema envolve a crença, bastante solidificada no imaginário social, de que o sucesso social advém exclusivamente do mérito dos indivíduos. Essa crença não se sustenta, porém, refutá-la não é simples. Para fazê-lo trago pesquisas recentes, dados relativos ao Brasil e uma breve reflexão da filosofia política nesse artigo.
Em recente trabalho intitulado “The paradox of inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand” (O paradoxo da desigualdade: desigualdade de renda e crença na meritocracia andam de mãos dadas), Jonathan J B Mijs (professor da London School of Economics e Political Science), mostra que os cidadãos em países desiguais se preocupam menos com a desigualdade do que aqueles em sociedades mais igualitárias.
Como entender esse paradoxo? Ele advoga que isso se explica pela crescente convicção, nos países mais desiguais, de que o sucesso social é reflexo de um processo meritocrático. O autor entende que a crescente desigualdade é legitimada pela crença popular de que a diferença de renda é meritocraticamente merecida: quanto mais desigual a sociedade, mais provável que seus cidadãos expliquem o sucesso em termos meritocráticos (imagem abaixo).
Em outra publicação do mesmo autor ele mostra que a crença na meritocracia vem crescendo no mundo nas últimas décadas. A imagem abaixo ilustra isso.
Há inúmeros tratados apontando os limites teóricos e práticos da crença na meritocracia individual como um elemento preponderante na distribuição dos bens materiais e simbólicos de uma sociedade. A meritocracia é um valor social que tem maior relevância em determinadas correntes de pensamento do que em outras. Minha intenção não é apresentá-la como parte negativa de um binômio que divide direita e esquerda. Também não se pretende afirmar que o mérito dos indivíduos seja uma variável insignificante na complexa arquitetura das relações sociais. Políticas públicas e medidas no setor privado que valorizem o esforço e os resultados atingidos por indivíduos e/ou coletivos se mostram eficazes em muitas áreas.
O que sabemos é que do ponto de vista estrutural a meritocracia tem pouca participação na alocação dos sujeitos nos espaços de poder e prestígio social.
Segundo estudo da OCDE, o Brasil é o segundo pior em mobilidade social em ranking que engloba 30 países. De acordo com a pesquisa podem ser necessárias até nove gerações para os pobres se tornem pessoas de renda média.
Dados do Equalchances.org (repositório mundial sobre Igualdade de Oportunidades e Mobilidade Social) mostram uma correlação positiva entre desigualdade de renda e desigualdade de oportunidades. Os países com maior grau de desigualdade de renda também são caracterizados por uma maior desigualdade de oportunidades. Numa amostra de 47 países, Brasil é péssimo exemplo, na imagem abaixo.
Em um texto que viralizou nas redes sociais em 2016, a juíza Fernanda Orsomarzo contou como foi percebendo seu privilégio e como o mérito individual deve ser medido a partir da igualdade de oportunidades. Um tema que provoca automático debate sobre meritocracia é o das cotas nas universidades, nessa entrevista, o historiador da Unicamp e de Harvard Sidney Chalhoub afirma que “A meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade”.
A desigualdade estrutural cria as condições para sua legitimação e reprodução. Entre essas condições está a crença na meritocracia como motor fundamental do sucesso. As crenças na meritocracia dos cidadãos são solidificadas pelo fato de que a maioria das pessoas é incapaz de desenvolver uma consciência dos processos estruturais que moldam os resultados desiguais da vida. Ao não conseguir fazê-lo, atribuem a riqueza ou a pobreza a características ligadas ao indivíduo: incapacidade, preguiça ou inteligência e perseverança.
Referências fundamentais, como John Rawls, afirmam que para que haja um sistema meritocrático realmente eficaz, é preciso ir além do individualismo e da afirmação formal da igualdade. Para Rawls, a meritocracia para ser justa demanda equidade de oportunidades e de condições sociais que garantam dignidade para as pessoas. Ou ainda, nas palavras de Álvaro de Vita em artigo em que usa Rawls como referência: “uma “meritocracia eqüitativa” exigiria a neutralização de todos os fatores ambientais que condicionam as oportunidades que cada um tem de adquirir as qualificações mais valorizadas”
Em dissertação de mestrado da Faculdade de Filosofia da USP, Mariana Ferrari de Oliveira estudou o valor da meritocracia no seio da obra de dois grandes teóricos da justiça distributiva: John Rawls e Ronald Dworkin. Ela conclui que, segundo esses autores, a organização social, política e administrativa de uma sociedade, bem como os encargos e vantagens presentes nela, não podem ser assentados em bases meritocráticas ou que envolvam unicamente a responsabilidade das pessoas sobre suas próprias escolhas.
Para além do diagnóstico de que do ponto de vista de uma teoria da justiça humanista a meritocracia não é um valor a ser chancelado em absoluto, temos o fator indutor da desigualdade que a crença meritocracia pode cumprir. A reportagem da Revista Galileu apresenta o quão a meritocracia pode ser mais um lance de sorte do que o resultado de uma disputa justa. Para tal eles citam o livro “Success and Luck: Good Fortune and the Myth of Meritocracy” (“Sucesso e Sorte: A Boa Sorte e o Mito da Meritocracia”) do economista americano Robert H. Frank, professor da Universidade Cornell.
Na medida em que pessoas com mais oportunidades têm desempenho melhor do que as que tiveram menos oportunidades e nós atribuirmos isso ao mérito individual, estamos dando o verniz de legitimação que a desigualdade precisava para se manter e até se ampliar.Aquele com mais oportunidades terá uma renda, um status e uma qualidade de vida melhor e irá acreditar que sua conquista se deve exclusivamente ao seu esforço e capacidade. Enquanto isso, o com menos oportunidades não irá usufruir dos privilégios do primeiro e irá encarar isso como justo, pois seu insucesso seria fruto de sua falta de esforço e capacidade.
Dados do IBGE vem mostrando que a escolaridade dos pais influencia diretamente a ascensão social e profissional do brasileiro. Diante do ainda baixo número de pessoas que concluiu o ensino superior no país (15% da população com 25 anos ou mais), há ainda uma intensa reprodução social nas profissões mais prestigiadas, mesmo diante da importante democratização do acesso a universidade no Brasil nos últimos anos.
Brasileiros com origem no topo da pirâmide social têm quase 14 vezes mais chance de continuarem nesse estrato do que pessoas nascidas na base ascenderem para essa posição, segundo a pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais, divulgada pelo IBGE. Nessa reportagem da Folha de São Paulo consta a explicação dessas caraterísticas da hierarquia social no Brasil.
Creio que resta comprovado que há limites em tomar a meritocracia como régua guia para a distribuição dos lugares sociais. Caso tenhas algum apreço por essa variável terá de dosá-lo com outros elementos para interpretar e entender a realidade brasileira.