A educação está no fundo do poço? É uma calamidade?

Virou lugar comum na internet afirmar que a educação brasileira “chegou ao fundo do poço”, é uma “calamidade”. O discurso de terra arrasada só interessa aos que apresentam soluções mágicas e aos que vinculam “resultados horríveis” a inimigos políticos de hoje e de ontem.

Como se trata de tema amplo e complexo, não pretendo aqui exaurir todas variáveis que podemos considerar para avaliar a qualidade da educação. Farei apenas alguns apontamentos relativos a alfabetização nos anos iniciais do ensino fundamental.

O usual para aferir qualidade no âmbito educacional é o uso das avaliações em larga escala. No caso da alfabetização o Brasil tem a ANA (Avaliação Nacional de Alfabetização). Quem acompanha políticas educacionais sabe dos limites das avaliações em grande escala. No caso da ANA, por exemplo, não conseguimos acessar em seu dados elementos sobre a prática pedagógica e outros fatores que possam influenciar os processos de ensino-aprendizagem.

É muito importante que isso fique claro, é comum acompanharmos a atribuição de culpa pelos problemas educacionais à escola, à professores e às práticas pedagógicas empregadas. Muitos reproduzem teses de que métodos ou autores são responsáveis, ainda mais quando o tema é alfabetização, objeto de debates polarizados. Avaliações em grande escala como IDEB, PISA, ANA não nos dão evidências para afirmar nada disso.

Outra ressalva importante de ser feita é de que resultados de avaliações em grande escala tendem, salvo valiosas exceções, a reproduzir desigualdades socioeconômicas que transcendem a escola. É consensual na literatura educacional que a condição socieconômica dos estudantes e das escolas é determinante em seus rendimentos escolares e na aquisição da aprendizagem.

Portanto, os resultados de alfabetização que, por vezes, informam manchetes alarmistas, advêm sempre de resultados de avaliações em larga escala cujo desenhos e resultados não permitem análises qualitativas de fôlego. Muito temos para avançar em pesquisas nesse campo para subsidiar políticas públicas.

Uso como base nesse comentário um artigo publicado recentemente por pesquisadores do INEP utilizando os dados da ANA, nesse caderno, a partir da página 57. Eles cruzam tais resultados com indicadores socioeconômicos e com o índice de adequação da formação docente. Vale a leitura.

Em um primeiro momento eles fazem a apresentação descritiva dos resultados da ANA 2016 para leitura e matemática, tomando como critério os referenciais curriculares e as políticas vigentes na época da aplicação das provas.

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INEP

No dado geral do país (imagem acima), notamos que o desafio ligado a matemática é muito maior do que o da leitura. O índice de crianças do 3° ano do ensino fundamental com resultado insuficiente é de 22%. Nessa metodologia está se considerando nível suficiente em leitura os que estão no nível 2 e 3 numa escala de quatro níveis em que o 1 é insuficiente e o 4 é desejável.

Na apresentação do MEC da ANA a interpretação dos dados é diferente. Aponta-se o nível 2 como insuficiente em leitura também, o que eleva esse índice para 54% ao invés de 22%. Na imagem abaixo se nota que o nível 2 em leitura é considerado básico, contudo no computo geral é se insere no “insuficiente”.

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Apresentação do MEC dos resultados da ANA

No artigo que estou usando de base, as autoras Fabiana de Assis Alves (Doutora em Economia) e Ticiane Bombassaro Marassi (Doutora em Educação), pesquisadoras do INEP, explicam teórica e metodologicamente porque consideram o nível 2 como suficiente. Leia.

Esse índice de 22% de estudantes com desempenho insuficiente em leitura aponta que não podemos falar em fundo do poço ou calamidade, mesmo com os enormes gargalos que temos no Brasil. Os que estão no nível suficiente têm de aperfeiçoar suas habilidade de compreensão de texto, tendo em vista que já leem palavras e frases e fazem correlação de causa e efeito. As próximas avaliações serão feitas com crianças de 2° ano do ensino fundamental, as métricas e critérios provavelmente terão de ser adaptados.

Quando olhamos para os resultados regionais identificamos as disparidades entre o norte e o nordeste e as demais regiões. Aqui o nível socioeconômicos mostra o seu peso.

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INEP

Quando se faz o cruzamento (imagem abaixo) dos resultados da ANA com o nível socioeconômicos das escolas, conseguimos identificar a associação positiva entre maior nível socioeconômico e melhor desempenho na avaliação.

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No trabalho citado há outros inúmeros cruzamentos, todos corroboram com a perspectiva de que o nível socioeconômico, escolarização dos pais e ambiente familiar culturalmente estimulante são variáveis decisivas no processos de alfabetização e na aprendizagem como um todo. Isso não significa que outros fatores ligados ao clima escolar não possam incidir sobre a aprendizagem. Há exemplos de redes que conseguem dirimir as desigualdades prévias dos alunos e garantir aprendizagem em uma escala maior para os mais pobres, os casos de Sobral e do Ceará já são amplamente conhecidos.

Temos muito a avançar no que tange a alfabetização, negamos o aprendizado na idade adequada para muitas crianças brasileiras, mas quando olhamos também o IDEB, notamos avanços nos últimos anos. Segundo dados do Todos Pela Educação, em 2007, 28% das crianças do 5º ano tinham aprendizado adequado em português, em 2017, já eram 60%. Temos de seguir melhorando esses indicadores.

A lacuna de aprendizagem que mais chama atenção é em matemática, infelizmente a nova Política Nacional de Alfabetização não trata essa questão com a devida atenção. O trabalho no qual me embaso traz nas conclusões que “o que se verifica é que se parte de um diagnóstico exagerado de analfabetismo no Brasil, tomando por base uma classificação parcialmente equivocada das escalas da ANA (2016)”, e afirma ainda:

“Compreende-se que faltam evidências e uma correta interpretação dos resultados para o anúncio do caos estabelecido na alfabetização, bem como na proposta de solução que, no atual momento, reside apenas na ênfase da adoção coletiva do método fônico. Ignoram-se o pacto federativo e as diversas especialidades do professor, buscando resolver um problema que não existe: o diagnóstico sem evidência de que os estudantes não sabem decodificar.”

Resta claro que é necessário aprofundar as pesquisas sobre as práticas pedagógicas, tanto para diagnosticar as formas como os professores alfabetizam, qual é o impacto disso na aprendizagem e quais metodologias exitosas podem se transformar em norte na formação docente.

Muitos avanços da neurociência estão nos mostrando como as crianças aprendem a ler, essas evidências não nos levam a práticas únicas, homogêneas, mas indicam alguns parâmetros que os professores devem conhecer. O debate sobre o método fônico parece muito poluído por rusgas políticas que infelizmente servem de muro para um diálogo mais profícuo. A decodificação grafofonológica é uma etapa fundamental da formação de leitores e não pode ser preterida em nome de uma crença que sua prática representa determinada ideologia, são falsas polêmicas.

Temos de ter mais pesquisas como essa, cuja segunda fase prevê estudar escolas pobres com êxito e escolas ricas com baixo índice de aprendizagem. Essas evidências irão ajudar o gestor público e o gestor escolar a entender melhor as condicionantes da aprendizagem.

Em educação tudo é processo, nada é simples, não podemos cair em discursos que propõem uma “ação bala de prata” para resolver tudo ou visam explicar sua condição a partir de premissas simplórias (doutrinação e etc).

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