Políticas educacionais nos últimos 20 anos e os desafios da próxima década

RESUMO

As últimas duas décadas foram palco de importantes avanços para a educação pública brasileira, o ensino fundamental foi universalizado e o investimento por aluno se organizou e se expandiu. O país foi instado a garantir maior equidade de acesso e mais qualidade na oferta justamente no período em que a idade escolar obrigatória e o volume de estudantes se ampliaram. Contudo, uma recessão e uma pandemia se atravessaram no caminho, e agora? Esse texto traz comentários sobre o financiamento educacional, a avaliação da qualidade e os efeitos da pandemia na educação escolar. Concluo apontando, em caráter propositivo, aqueles que entendo ser os principais desafios da gestão pública da área educacional para a próxima década.

Palavras-chave: políticas educacionais, financiamento educacional, indicador de qualidade, pandemia.

As políticas educacionais englobam, no caso brasileiro, um grande conjunto de estratégias e ações dos sistemas de ensino nas três esferas do poder público: União, estados e municípios. O Brasil experimentou, nas últimas duas décadas, a universalização do ensino fundamental e a expansão do acesso à pré-escola, ao ensino médio e à educação superior.

Podemos chamar de políticas públicas educacionais a implementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef – 1996) e, depois do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb, de 2006, renovado em 2020), a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb – 2007), a ampliação do ensino fundamental para nove anos, a aprovação do Piso Nacional Salarial do Magistério (Lei 11.738/2008), a ampliação, através da Emenda Constitucional 59/2009, da idade obrigatória na educação básica (de 4 a 17 anos), a aprovação do Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014), a elaboração e publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a reforma do ensino médio (Lei 13.415/2017) entre tantas outras medidas.

Cito esses exemplos para demonstrar que políticas educacionais podem ter diversas características e finalidades, podem tratar de financiamento, de oferta escolar, de valorização do magistério, de questões curriculares e mesmo de aspectos pedagógicos. Esse ensaio visa elaborar algumas reflexões gerais sobre a situação da educação brasileira, dando especial atenção para as políticas de financiamento educacional e de avaliação da qualidade. Busco, também, esclarecer alguns conceitos ligados às políticas educacionais e, ao final, aponto aqueles que entendo serem os principais desafios da gestão pública da área educacional.

A educação é definida, no primeiro artigo da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394/1996), como tudo que abrange “os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Já a educação escolar, da qual trato neste texto, circunscreve-se àquela ofertada nas redes municipais, estaduais e federais de ensino. Portanto, educação é algo mais amplo que educação escolar que, por sua vez, é algo mais amplo que ensino.

Políticas educacionais, como o nome já anuncia, são permeadas por dimensões políticas e ideológicas. Desde a concepção, passando pela execução e chegando até sua avaliação, as políticas públicas são atravessadas por interesses de diferentes grupos, por distintas visões de gestão do Estado e carregam em si projetos de sociedade em constante disputa.

No campo da educação, as políticas públicas precisam ser implementadas por uma cadeia complexa de gestores e trabalhadores. Isso faz com que as políticas educacionais sejam ações de médio e longo prazo, cujos resultados não aparecem de um dia para o outro. Por essa razão é que a continuidade do aperfeiçoamento de políticas de estado (e não apenas de governo) é fator fundamental para a área. Infelizmente, a descontinuidade de gestão e o uso da educação como espaço de distribuição de poder local e regional são características que marcam nosso país.

Ao se tratar das diferentes explicações sobre a qualidade da educação escolar, é importante considerar os fatores exógenos, que não estão ao alcance da gestão das redes e escolas, e os endógenos, que dizem respeito a elementos cuja intervenção da gestão é possível. Os fatores exógenos são a desigualdade social, a pobreza, a violência, a carência material e psicológica dos estudantes, enfim, as condições materiais de existência das crianças e dos jovens que estão na escola pública. Entre os fatores endógenos, temos os currículos, as carreiras docentes, a formação inicial e continuada e a infraestrutura das escolas.

Já sabemos que o professor é um vetor fundamental do processo de ensino-aprendizagem (SIMIELLI, 2017), mas para que seu trabalho ocorra a contento, é preciso que ele tenha formação pedagógica adequada, plano de carreira atrativo e digno, que sua escola tenha infraestrutura que garanta condições razoáveis de trabalho e que haja uma gestão democrática e eficiente a ponto de permitir certo grau de autonomia. Além disso, precisamos que o professor tenha qualificada formação continuada e que ocorram avaliação e monitoramento periódicos dos processos educativos nas escolas e redes de ensino. Para que tudo isso aconteça, é que se desenham e se implementam políticas educacionais.

O FINANCIAMENTO EDUCACIONAL

Durante os anos 1990, com o Bolsa Escola, a universalização do ensino fundamental foi sendo conquistada e se consolidou com o Bolsa Família nos anos 2000. Concebo os últimos 20 anos como um momento histórico em que se buscou mais equidade e qualidade na educação, tendo, ao mesmo tempo, muito mais crianças e jovens na escola (em especial, os mais pobres) do que no passado. Ter mais oferta, mais aprendizado, com um contingente muito maior de pessoas não é um desafio trivial.

Com a promulgação do Fundeb, em 2006, e com a regulamentação do fundo em 2007, o Brasil, pela primeira vez, organizou o financiamento das três etapas da educação básica – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. A partir dele é que o investimento por aluno no Brasil começa a crescer[1], além disso, a complementação de 10% de recursos da União passa a alcançar as regiões mais pobres do país.

Com o Fundeb, a desigualdade entre investimento por aluno nas redes municipais caiu de 10.012% para 564%, segundo estudo da Consultoria da Câmara dos Deputados. Essa política pública foi fundamental para aprovação do piso salarial de professores da educação básica (Lei 11738/2008), tendo em vista que seu reajuste está ligado ao percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno do Fundeb. O debate sobre a mudança deste indicador está sendo puxado por prefeitos e governadores que argumentam que o indexador da inflação, por exemplo, pressionaria menos as contas dos entes federados. Concebendo que os docentes no Brasil recebem, em média, cerca de 78% dos ganhos dos demais profissionais com mesma titulação, cabe desenvolver estratégias para que siga ocorrendo a valorização dos salários dos professores.

Em 2020, os debates educacionais giraram em torno da renovação do Fundeb, que estava previsto nas disposições transitórias da Constituição Federal e seu prazo terminava em dezembro daquele ano. Foi aprovado, no Congresso Nacional, que o Fundeb passe a fazer parte da Carta Magna de forma permanente e que a complementação de recursos da União passe de 10% para 23% do total arrecadado do fundo, essa transição ocorrerá até 2026.

Há um conjunto de mudanças no novo Fundeb que o tornaram mais equitativo do que o anterior. A sua regulamentação está definida na Lei 14.113/2020, o saldo que se colhe é positivo, tendo em vista que novos recursos serão alocados na educação e mais redes de ensino e estudantes deverão ter acesso a melhores condições educacionais. Cabe chamar atenção para o fato de que o novo Fundeb veda o pagamento de inativos com seus recursos. Essa prática é usual em muitos estados e cabe aos órgãos de controle cobrar dos executivos um planejamento para que tal descumprimento constitucional não se perenize.

Na renovação do Fundeb, as discussões mais substanciais trataram da recorrente pergunta: já investimos muito em educação? A falsa dicotomia entre falta de recursos e falta de gestão sempre ocupa os debates. É usual comparar nosso investimento em educação com o de outros países com base no gasto relativo ao PIB (Produto Interno Bruto). Ter como base apenas esse indicador produz análises que desconsideram os diferentes perfis demográficos, o tamanho da população em idade escolar e o volume desse contingente que ainda está fora da escola em cada país.

O Brasil ainda possui, fora da escola, uma elevada parcela da população em idade escolar, parcela superior, inclusive, a de países da América Latina. O indicador referente ao PIB também compara sistemas de ensino com diferentes níveis de estruturação: países com redes consolidadas e outros com redes em expansão, com um histórico recente de investimentos mais significativos.

O nosso país ainda tem profissionais da educação com salários, em média, abaixo de outros profissionais com formação semelhante, uma desigualdade interna de financiamento enorme e escolas com infraestrutura muito limitadas. Há uma correlação nítida entre a disponibilidade de recursos por aluno e os resultados do Ideb, como mostra um didático trabalho do Todos Pela Educação (2019), que também coloca em xeque a suposta “ineficácia” do Fundeb em relação à aprendizagem. Ainda temos um subfinanciamento na educação básica brasileira: 46% dos municípios não atingem R$ 4.300 por aluno, valor de referência mínimo para se alcançar um Ideb satisfatório. O valor investido define sozinho os indicadores de qualidade? Não, sem dúvida, a gestão e outros fatores também influenciam, contudo, conclui o estudo citado acima: “em 2015 era muito raro que uma rede de ensino — mesmo eficiente no uso de recursos — alcançasse um resultado de qualidade satisfatório em contextos de disponibilidade fiscal por aluno abaixo de R$ 4.300”. 

Conforme a comparação internacional relativa ao investimento por aluno no ensino fundamental e médio, feita no Education at a Glance 2021, da OCDE[2], utilizando a paridade do poder de compra, o Brasil aplica, em média, 3.748 dólares por ano, quando a média da OCDE é de 10.101 dólares. O Brasil investe menos do que países como Argentina, Costa Rica e Chile e tem passivos históricos e contemporâneos maiores, as condições físicas das nossas escolas são exemplos disso.

Os recursos e a infraestrutura disponíveis nas escolas, no Brasil, mostram grandes gargalos. Os dados do Censo Escolar 2020 apontam que as escolas municipais e estaduais, que ofertam a imensa maioria das matrículas da educação básica pública, são as que mais registram dificuldades. Estamos falando da maioria das escolas municipais sem: biblioteca, laboratórios de ciências, laboratório de informática, banda larga, parque infantil, quadras poliesportivas e área verde.

Esses dados ilustram a necessidade de mais investimentos, mas não negam a demanda por aprimoramento de gestão das redes de ensino e das escolas. A aprovação de um Sistema Nacional de Educação que vem sendo (novembro/2021) debatido no Congresso Nacional, pode ser medida importante para o aperfeiçoamento da gestão das políticas educacionais. Em síntese, apenas garantir mais recursos, sem avaliações e metas rigorosas, mostrou alguns limites sim, entre 2005 e 2013, mas uma melhor governança não faz mágica onde ainda são necessários mais investimentos.

Pensar em políticas para promover equidade orçamentária, como é o caso do Fundeb, e pensar em políticas com foco na aprendizagem não são coisas excludentes. O fundo representa 65% do investimento em educação básica pública no país, não a totalidade. Outras formas de indução de qualidade podem ser planejadas e executadas pelo Ministério da Educação e pelos sistemas de ensino, utilizando-se de recursos das transferências voluntárias (salário-educação) e das próprias redes de ensino.

Infelizmente, a série histórica dos últimos cincos anos (2015/2020) vem se marcando pela redução dos recursos destinados à educação por parte da União. A recessão econômica e o advento da Emenda Constitucional 95 (teto de gastos) estão impondo perdas importantes de recursos federais para todas as etapas e níveis de ensino, conforme pode ser evidenciado na Nota Técnica 19/2021 (TANNO, 2021) da Consultoria de Orçamento da Câmara Federal.  

A reflexão sobre investimento em educação deve ter presente as condições concretas das redes de ensino e das escolas, partir da ótica da garantia do direito à educação à luz da tríade universalização, equidade e qualidade. Temos estágios muito diferentes em regiões, estados e municípios, e o Fundeb permanente, com mais recursos, com previsão de acompanhamento transparente e avaliação por indicadores representa um avanço para a educação.

INDICADORES DE QUALIDADE

Não restam dúvidas de que precisamos avançar em todos os níveis educacionais, de que nossos problemas de aprendizagem são muito graves e devem ser o foco das políticas públicas. Mas os convido para analisar os dados nacionais em perspectiva histórica. Antes da Constituição Federal, o desafio educacional do país ainda era o acesso, embora ele ainda exista, hoje o desafio da garantia da aprendizagem é o protagonista.

Em termos de avaliação da educação básica, a política pública que se consolidou no período recente foi o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), indicador elaborado pelo Ministério da Educação. O Ideb é calculado com base em dois resultados que são nucleares para definir a qualidade da educação e, por consequência, para acompanhar e avaliar a oferta do direito à educação: a escolarização e a aprendizagem.  A escolarização é aferida pelas taxas de aprovação, isto é, a proporção de alunos que passam ou não de ano, e o aprendizado é medido pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), por meio das provas de proficiência em língua portuguesa e em matemática.

Falemos um pouco desse indicador: nos anos iniciais do ensino fundamental, apesar de todas as nossas dificuldades, atingimos todas as metas do Ideb como país. No que tange aos anos finais do ensino fundamental, o país alcança as metas estabelecidas nos três primeiros anos da série (2007, 2009, 2011), mas não o faz nos últimos. Em 2017, já se sente a recessão econômica de 2015/16 que reduz as matrículas em tempo integral nessa etapa (eram 16,7% em 2015 e caem para 9% em 2016).

No ensino médio, está nosso cenário mais preocupante, muito em função da estagnação dos resultados do Ideb, apesar da melhora observada em 2019. Há experiências exitosas como as do Ceará e de Pernambuco, os estados subnacionais não conseguem investir o adequado para ofertar ensino integral ou matrículas integradas à educação profissional, e a coordenação da União ainda é tímida no que se refere a uma integração com as redes estaduais. A experiência exitosa dos Institutos Federais ainda é uma política pública que atinge um número limitado de jovens e cuja expansão foi obliterada pela recessão econômica de 2015.

A melhoria dos indicadores na educação básica, tanto no fundamental, quanto no médio, foi mais expressiva no Norte e Nordeste (BERNARDO et al, 2020), regiões que mais receberam recursos do Fundeb a partir de 2008 e que devem ser as mais contempladas com a renovação do fundo.

O usual para aferir qualidade no âmbito educacional é o uso das avaliações em larga escala. No caso da alfabetização, o Brasil aplicava a ANA (Avaliação Nacional de Alfabetização). Quem acompanha políticas educacionais sabe dos limites das avaliações em grande escala. No caso da ANA, por exemplo, não conseguimos acessar em seus dados elementos sobre a prática pedagógica dos professores e outros fatores que possam influenciar os processos de ensino-aprendizagem.

Resultados de avaliações em grande escala tendem a reproduzir desigualdades socioeconômicas que transcendem a escola. É consensual, na literatura educacional, que a condição socioeconômica dos estudantes e das escolas é determinante em seus rendimentos escolares e na aquisição da aprendizagem. Os resultados de alfabetização que, por vezes, informam manchetes alarmistas, advêm sempre de resultados de avaliações em larga escala cujos desenhos e resultados não permitem análises qualitativas de fôlego.

Não está se dizendo com isso que as avaliações não são importantes, mas que para interpretar seus resultados e elaborar políticas educacionais que ataquem os problemas, precisamos ir além da nota e das médias. Políticas públicas podem ser efetivas em determinados contextos e não tanto em outros. Em trabalho publicado nos Cadernos de Estudos do INEP, sobre o panorama da alfabetização no Brasil, Ticiane Marassi e Fabiana Alves concluem que:

Compreende-se que faltam evidências e uma correta interpretação dos resultados para o anúncio do caos estabelecido na alfabetização, bem como na proposta de solução que, no atual momento, reside apenas na ênfase da adoção coletiva do método fônico. Ignoram-se o pacto federativo e as diversas especialidades do professor, buscando resolver um problema que não existe: o diagnóstico sem evidência de que os estudantes não sabem decodificar. (MARASSI; ALVES, p. 95, 2019).

As autoras corroboram com a perspectiva de que o nível socioeconômico, escolarização dos pais e ambiente familiar culturalmente estimulante são variáveis decisivas no processo de alfabetização e na aprendizagem como um todo. Isso não significa que outros fatores ligados ao clima escolar não possam incidir sobre a aprendizagem. Há exemplos de redes que conseguem dirimir as desigualdades prévias dos alunos e garantir aprendizagem em uma escala maior para os mais pobres, os casos de Sobral e do Ceará já são amplamente conhecidos.

Temos muito a avançar no que tange à alfabetização, negamos o aprendizado na idade adequada para muitas crianças brasileiras, mas quando olhamos também o IDEB, notamos avanços nos últimos anos. Essa linha do tempo é importante para não se reproduzir o discurso de terra arrasada, de que todas as políticas educacionais adotadas foram ineficazes, isso não procede. Para se ter ideia, segundo dados da organização Todos Pela Educação (2021), em 2007, 28% das crianças do 5º ano tinham aprendizado adequado em língua portuguesa, em 2019, já eram 61%, já em matemática os dados são de 23% e 51%, respectivamente.

Com a previsão no novo Fundeb de que, em dois anos, os estados precisam regulamentar em lei nova forma de distribuição para os municípios da cota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), considerando resultados educacionais e, com a previsão de que parte da complementação da União ao Fundeb (2,5%) será distribuída com base em indicadores de redução das desigualdades e melhoria da aprendizagem, a expectativa é de que novos indicadores sejam desenvolvidos pelos estados e municípios.

Ter mais avaliações locais e regionais, que aferissem a proficiência dos estudantes em mais áreas do conhecimento e que abarcassem mais elementos do que a proficiência, seria algo positivo. É importante que essas avaliações dialoguem com as nacionais e que a União se desafie a ampliar o escopo de seus indicadores também. Está em debate a reformulação do Ideb, o desafio é incluir dimensões ligadas à desigualdade e à evasão nesse indicador ou em uma composição com outros. Aferir qualidade educacional é tema complexo e requer ótima combinação entre objetivos e tecnicalidade de desenho do indicador. É central que tenhamos uma avaliação cada vez mais contextualizada da qualidade do ensino para não cairmos na tentação das explicações fáceis, do punitivismo e do culpabilismo.

POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA PANDEMIA

É impossível não tratar da crise sanitária que se instaurou no Brasil e no mundo em 2020 e 2021 em função do coronavírus. Escolas fechadas, crianças e adultos tendo que praticar o distanciamento social e uma radical mudança na forma de socialização e de fazer educação escolar. Novos desafios se colocaram, e as redes de ensino tiveram de buscar alternativas não presenciais para manter o contato com os estudantes e ofertar atividades pedagógicas.

No Brasil, o período de inatividade escolar se estende, o ano letivo de 2020 e o primeiro semestre de 2021 ficaram prejudicados, e o dilema do retorno das aulas presenciais é grande enquanto nos aproximamos do fim de 2021, tendo em vista que a circulação e a letalidade do vírus ainda estão presentes, e a vacinação não alcançou as crianças menores de 12 anos. A resposta do poder público, no momento de emergência, foi muito diversa, estudos como esse do Instituto Rui Barbosa, com uma amostra formada por 249 redes de ensino, de todas as regiões do País, sendo 232 municipais e 17 estaduais, demostram que 82% das redes municipais têm alguma estratégia para oferecer aulas ou conteúdos pedagógicos durante a pandemia; 18% não têm. Todas as 17 redes estaduais analisadas disseram ofertar algum tipo de atividade não presencial no momento.

No que tange ao papel da União, infelizmente, a pandemia coincidiu com trocas de ministros, polêmicas e com uma evidente inoperância do Ministério da Educação (MEC) em relação ao seu papel de coordenação das políticas educacionais previsto da Constituição Federal. No quesito financiamento, o MEC não batalhou pela renovação do Fundeb e nem pela vinculação de recursos para educação nos repasses aprovados pelo Congresso Nacional para os estados em 2020. A articulação do MEC, no que se refere à garantia de condições para oferta de ensino não presencial, para garantir condições sanitárias e uma avaliação diagnóstica qualificada quando do retorno também não existiu até então.

Em termos de normativas, a resposta do Conselho Nacional de Educação foi mais rápida e qualificada, houve a flexibilização de dias letivos e critérios para oferta de ensino não presencial e recuperação das atividades em pareceres desse colegiado. Infelizmente, isso não tem se mostrado suficiente. As lacunas relativas à inclusão digital são muito grandes e, assim como ocorreu no combate ao coronavírus, do ponto de vista da saúde e da economia, o Brasil não respondeu de forma adequada à crise no campo educacional.

A etapa da alfabetização foi a que mais sofreu com a inatividade escolar, as crianças ficaram muito dependentes do auxílio familiar, e a desigualdade de capital cultural e escolaridade dos pais implica um agravamento do problema. Diferente de realizar brincadeiras e conversar (educação infantil) ou apenas acompanhar a realização de atividades (anos finais do fundamental e ensino médio), nessa etapa, muitos pais não têm a paciência, a desenvoltura e a competência para conduzir o complexo processo de alfabetização. Por sua vez, o aluno que está se alfabetizando não consegue progredir com “pesquisas da internet”, ele precisa de orientação dirigida, aprender a ler e escrever não é um processo natural e demanda recursos técnicos por parte de quem está ensinando.

Uma grande adaptação teve de ser pensada. Iniciamos com retorno parcial, envolvendo mudanças nos espaços físicos, rodízios de alunos, redução de turmas. As atividades pedagógicas tiveram de se enquadrar ao novo cenário, o ensino presencial, ao menos durante a transição, teve de priorizar aquelas atividades que permitam algum distanciamento, mais individualizadas e que tenham suporte em questões mais dirigidas.

A comunicação com os pais, que já era fundamental, teve de se qualificar e intensificar, isso valeu tanto para as questões sanitárias, quanto para algum suporte nas questões do ensino. A recuperação da aprendizagem precisa se tornar política pública institucional por meio de programas de reforço que combinem atividades presenciais e remotas, de preferência, com turmas pequenas e materiais diferentes do usual.

Esse é um desafio para os secretários de educação e gestores escolares, tanto no que tange à oferta de formação para os docentes, quanto à oferta de material didático. Tudo isso com base em avaliação diagnóstica inicial e avaliação periódica do processo. A gestão educacional (das redes) e a gestão escolar (das unidades de ensino) ganharão novas demandas pós-pandemia, questões relativas à inclusão digital, aos recursos humanos e ao aprendizado apareceram em contornos diferentes dos anteriores.

Essa crise, em particular, está nos mostrando duas questões que podem parecer contraditórias à primeira vista, mas não são. A primeira é que, na educação, nada substitui as atividades presenciais e o professor, a segunda, é que nunca foi tão necessário saber sobre e como usar as tecnologias, bem como as diferentes formas de ensino não presencial (TV, rádio, redes sociais, livro didático). Países e redes de ensino que já usavam de maneira mais madura e de forma complementar o ensino mediado por tecnologias, conseguiram maior êxito no ensino remoto no período emergencial. No retorno presencial, precisamos usar meios remotos para recompor conteúdos e calendário, aqueles que não fizerem registro de carga horária, ao menos irão ofertar algo como complemento de forma remota e precisamos saber fazer.

Então vejamos: a interação na escola e o papel do professor saem muito fortalecidos da crise, eles vão além do ensino, constituem um bem cultural, civilizatório. Ao mesmo tempo, o uso de novas tecnologias como auxiliar no processo de ensino precisa ser incorporado no meio educacional em uma escala maior, não para substituir o ensino presencial (não há essa equivalência), mas para fortalecê-lo e para que haja recursos mais qualificados quando se enfrentar crises como essa que, infelizmente, seguirão ocorrendo.

O aprendizado aqui é de que a formação continuada de professores terá de ser mais prática, tendo um foco maior no domínio das ferramentas digitais sim, pois elas são pontos de apoio importantes. As crises demandam criatividade e proatividade. Imersos em dificuldades, há casos, Brasil afora, de professores que se desdobraram, aprendendo e propondo ações remotas muito interessantes para não deixar os alunos parados. Essa oferta dirimiu a defasagem que será significativa, em especial, entre os mais pobres. Desafios centrais da retomada presencial das atividades são: organizar busca ativa intersetorial para reduzir a evasão, ampliar o número de matrículas em tempo integral para garantir reforço escolar planejado e equipar as escolas para receber por mais tempo os alunos.

O QUE PRECISAMOS E PALAVRAS FINAIS

Quais políticas públicas são urgentes na área educacional? Os desafios na educação são grandes e complexos, temos de avançar na atratividade da carreira do magistério (ampliar salários iniciais, propor uma prova nacional docente, rever critérios para ingresso nas licenciaturas), garantir meios para superar os déficits enormes de infraestrutura das escolas e prover boas condições de trabalho aos docentes. Esses, de preferência, devem trabalhar em apenas uma escola e ter um número razoável de turmas e de alunos por sala.

Essas são dimensões mais estruturais, mas há as políticas com foco na aprendizagem que, quase sempre, causam controvérsia e resistência, inclusive, dos setores progressistas. São elas:

– Remodelar a formação inicial dos professores no Brasil. Temos de focar mais em dimensões práticas e em como crianças e jovens aprendem. As descobertas recentes da neurociência e da psicologia cognitiva pouco aparecem nos currículos e nas práticas das licenciaturas, isso precisa mudar.

– Repensar as políticas de formação continuada em nossas redes de ensino. Focar em metodologias de ensino, em gestão de sala de aula, na técnica de planejar e executar ações, projetos e dinâmicas que além de fazer sentido para os estudantes, garantam-lhes o desenvolvimento de habilidades necessárias para a cidadania plena (ler, escrever e calcular são as prioridades sim, um imperativo ético).

– Ter metas de aprendizagem nas redes de ensino, sim, factíveis e operacionalizadas, de forma que a cooperação e não a competição levem a determinadas recompensas, sejam financeiras, de infraestrutura ou de status social. Metas que possam ser avaliadas pelos próprios atores do processo educativo e pela gestão das redes. Para evitar que se reproduzam desigualdades, as metas devem focar nas melhorias de cada escola e de cada rede e não em objetivos genéricos ou níveis absolutos. Também é fundamental que haja apoio técnico para redes e escolas, com foco naquelas com mais dificuldades e fomento ao intercâmbio de boas práticas entre escolas.

– Profissionalizar a gestão escolar e ir além da eleição na escolha de diretores. A eleição deve ser combinada com critérios ligados à formação e à seleção de profissionais capacitados para a gestão.

– Na gestão pública, é fundamental desenvolver instrumentos de avaliação e acompanhamento de uso contínuo, que transcendam as avaliações de grande escala. Ter um uso pedagógico dessas avaliações de escolas e redes. Identificar as estratégias e ações que, comprovadamente, fizeram algumas redes de ensino avançarem nos resultados de aprendizagem e se inspirar é fundamental. Ter pessoas altamente qualificadas nas secretarias municipais e estaduais e em suas equipes e proteger politicamente a área da educação dos interesses eleitoreiros e fisiológicos é fundamental.

O Brasil ainda está longe de ofertar uma educação de qualidade para todos, porém, como estou demonstrado nesse breve texto, avançamos em inúmeros aspectos. As políticas educacionais visam atender a seguinte tríade: universalização, equidade e qualidade. Essas dimensões não são etapas lineares e sequenciais que são conquistadas uma após a outra, elas acontecem ao mesmo tempo, estão amalgamadas. O conceito de qualidade é geralmente vinculado estritamente à conquista da aprendizagem, porém, merece ser concebido de maneira mais elástica, haja vista que qualidade pressupõe boas condições de trabalho, infraestrutura adequada e clima escolar positivo.

Por fim, em educação, tudo é processo e, tanto os problemas, quanto os avanços da área, não se explicam em si, ou seja, a mobilização de diferentes áreas do poder público é necessária para modificarmos a realidade educacional. As condições socioeconômicas, culturais e políticas influenciam diretamente na educação. Para que as políticas educacionais tenham êxito, além da continuidade de gestão de programas, a adesão dos atores envolvidos, das famílias e, principalmente, a priorização dos atores políticos são essenciais.   

REFERÊNCIAS

BERNARDO, Joyce Santana et al. Implicações dos repasses constitucionais na qualidade da educação municipal das regiões Norte e Nordeste do Brasil. Educ. Pesqui. São Paulo, v. 46, e 218302, 2020. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ep/a/wBKXwpzGVqLFdJ8yqksLbdz/?lang=pt>. Acesso em 06 nov. 2021

BRASIL, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Estimativa do Investimento Público Direto em Educação por Estudante, com Valores Atualizados para 2016 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA); e a Proporção do Investimento Público por Estudante da Educação Superior sobre o Investimento Público por Estudante da Educação Básica, por Nível de Ensino – Brasil 2000-2017. Disponível em: <https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/indicadores-educacionais/indicadores-financeiros-educacionais>. Acesso em 06 de nov. 2021.

Instituto Rui Barbosa. A educação não pode parar. Disponível em: <https://projetoscte.irbcontas.org.br/a-educacao-nao-pode-esperar/>. Acesso em 06 de nov. 2021.

MARASSI, Ticiane; ALVES, Fabiana. Panorama da alfabetização no Brasil: uma análise a partir dos resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização 2016. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2019. 10 v.: il. – (Coleção Cadernos de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais; v. 3). Disponível em: < http://cadernosdeestudos.inep.gov.br/ojs3/index.php/cadernos/article/view/3991>. Acesso em 06 nov. 2021.

SIMIELLI, Lara Helena. Equidade e oportunidades educacionais: o acesso a professores no Brasil. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, v. 25, n. 46, p. 1-30, 2017. Disponível em: < https://www.redalyc.org/pdf/2750/275050047033.pdf>. Acesso em 06 de nov. 2021.

Todos Pela Educação (2021). 2º Relatório Anual de Acompanhamento do Educação Já! Balanço 2020 e Perspectivas 2021, 1ª Edição. Todos Pela Educação: São Paulo. Disponível em: <https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2021/02/2o-Relatorio-Anual-de-Acompanhamento-do-Educacao-Ja_final.pdf>. Acesso em 06 de nov. 2021.

__________________ (2019). Nota Técnica: Análise da relação entre investimento por aluno e qualidade do ensino. Acesso em 14/08/2020. Disponível em: <https://www.todospelaeducacao.org.br/_uploads/_posts/319.pdf?477736800>. Acesso em 06 de nov. 2021.

TANNO, Claudio. Universalização, Qualidade e Equidade na Alocação de Recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB): Proposta de Aprimoramento para a Implantação do Custo Aluno Qualidade (CAQ). Câmara dos Deputados. Estudo Técnico nº 24/2017. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pec-015-15-torna-permanente-o-fundeb-educacao/documentos/outros-documentos/estudo-da-consultoria-de-orcamento-da-camara-dos-deputados>. Acesso em 06 de nov. 2021.

________________. Nota Técnica 19/2021. Ministério da Educação: Despesas Primárias pagas 2015-2020 Impacto da EC Nº 95/2016 (Teto de Gastos) e orçamento 2021. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2021/NT19_2021MECdespesasprimriasetetodegastos.pdf>. Acesso em 06 de nov. 2021.


NOTAS

[1] Conforme o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) em sua Estimativa do Investimento Público Direto em Educação por Estudante, o Brasil sai de uma aplicação geral por aluno da educação básica de R$ 2.357, em 2000, e chega a 2017 com uma aplicação de R$ 6.823. Dados corrigidos pela inflação de 2016.

[2] Tabela C1.2. acessada em 13/10/2021, disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/sites/b35a14e5-en/1/3/4/2/index.html?itemId=/content/publication/b35a14e5-en&_csp_=9689b83a12cab1f95b32a46f4225d1a5&itemIGO=oecd&itemContentType=book

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